Nuclear Criticism

(registro fotográfico do colóquio “Nuclear Criticism”. Jacques Derrida; Ted Morris; Richard Klein, 1983)

Tem ganhado relevância, especialmente nas áreas do pensamento que cuidam da crítica cultural, uma espécie de problematização do nosso tempo que denuncia a incapacidade de pensar futuros outros (ou, em sentido semelhante, denunciar que mesmo futuros outros são imaginados sempre dentro das mesmas coordenadas); o exemplo mais notável é, certamente, o trabalho de Mark Fisher. Porém, durante a década de 1980, um grupo de pesquisadores e intelectuais já sondava terrenos semelhantes, em um campo de estudos que, infelizmente, teve vida breve*: Nuclear Criticism. Em 1983, um colóquio com esse tema é organizado pelos editores da revista Diacritics e, em 1984, é publicado no volume seguinte da revista as palestras e os textos daquele evento. Jacques Derrida era um dos principais artífices do encontro, elaborando o texto que seria uma espécie de “manifesto de fundação” da Nuclear Criticism: No Apocalypse, Not Now (Seven Missiles, Seven Missives, Full Speed Ahead). Período histórico povoado por representações culturais catastrofistas, nem um pouco amenizado pela retórica belicosa da administração Ronald Reagan, Derrida reconhece, porém, que a escatologia nada tem de nova. O que experimentamos como novidade, nesse sentido, é que, na era das bombas atômicas, pesa sobre a humanidade a perspectiva realista de catástrofe global, de extinção em massa, enfim, do fim do mundo como o conhecemos. Além disso, esse espectro — esse “referencial absoluto” — é, ele mesmo, responsável por coordenar e influenciar culturalmente a forma como imaginamos nosso futuro — ou, mais precisamente, nosso fim. A Nuclear Criticism seria como uma arma — um míssil-missiva — que realizaria uma espécie de engenharia reversa dos nossos textos, nossa literatura e nossa cultura: afinal, a guerra nuclear, como Derrida observa, é eminentemente (uma guerra) textual. Porém, na ocasião do seu acontecimento — lembremos que a administração Reagan não descartava uma espécie de ataque nuclear preemptivo contra a União Soviética —, Derrida especula que, além de um evento de extinção em massa, “testemunharíamos” (aqui entre aspas, pois esse acontecimento seria impossível de testemunhar) o fim daquilo que chamou de arquivo, entendido como o conjunto da nossa tradição escrita. O fim do mundo — o fim de vários mundos — está em direta relação com o fim da memória, o fim do lembrar, o fim do luto.

*O motivo dessa brevidade reside muito provavelmente no colapso da União Soviética, que fez arrefecer temores de guerras nucleares e o interesse nas questões atômicas na cultura.

Richard Klein #1

“The societal role of historians depends on the existence of what Jacques Derrida called the archive (in 1984, in diacritics, in relation to total nuclear war). It consists in ‘a project of stockpiling, of building up an objective archive over and above any traditional oral base,’ as well as all the systems of cataloguing and retrieval that make access to it possible, not to mention the infrastructure and markets that sustain it. The termination of organized existence, as the result of an ecological, nuclear, or pandemic catastrophe, means the end of social memory, hence the loss of societal mourning. There will be no one left to record the absence of the historian, no archive left that might permit the act of recovery, of the interiorization and recuperation of loss that mourning permits. ‘The burden of every [individual] death can be assumed symbolically by a culture and a social memory (that is even their essential function and their justification, their raison d’être),’ Derrida writes. But absolute holocaust (a pleonasm: holos means total), of climate change or pandemic or total nuclear war, presupposes a future from which organized social memory will have disappeared. Such a global catastrophe may be distinguished from the Holocaust of the Second World War. In the former instance, holos means the total destruction of the possibility of all social mourning. Conversely, we may never stop mourning the latter, the Holocaust. To designate such a possibility, the total destruction of the archive, we need the future perfect tense. It offers the perspective by which we in the present can view a certain future that is supposed to have already taken place—as if we had actually alighted in some far future in order to view that future as past”.
(Richard Klein, Climate Change through the lens of Nuclear Criticism)

Aleksiévitch #1

(Svetlana Aleksiévitch)

“Tudo o que conhecemos sobre o horror e o medo tem mais a ver com a guerra. O gulag stalinista e Auschwitz são recentes aquisições do mal. A história sempre foi a história das guerras e dos caudilhos, e a guerra se tornou, como costumamos dizer, a medida do horror. Por isso as pessoas confundem os conceitos de guerra e catástrofe. Em Tchernóbil, pode-se dizer que estão presentes todos os sinais da guerra: muitos soldados, evacuação, locais abandonados. A destruição do curso da vida. As informações sobre Tchernóbil nos jornais estão cheias de termos bélicos: átomo, explosão, heróis… e isso dificulta o entendimento de que nos encontramos diante de uma história nova: teve início a história das catástrofes. Mas o homem não quer pensar nisso, porque nunca ninguém pensou nisso antes. Esconde-se atrás do que já é conhecido. Atrás do passado. Até os monumentos aos heróis de Tchernóbil parecem militares…”
(Svetlana Aleksiévitch, Vozes de Tchernóbil)

Glosas sobre o biopoder e a “situação atômica” em Michel Foucault

(Michel Foucault)

Michel Foucault nunca escreveu um livro em que desenvolvesse exclusivamente sobre o que chamou de biopoder. Seu curso no Collège de France, O nascimento da biopolítica, sabemos, possui um título enganoso. É no final de História da Sexualidade I (1976), porém, que encontramos a descrição mais sistemática do que entende por biopoder. Há uma menção curiosa sobre a situação atômica da época, como uma espécie de culminação do desenvolvimento do biopoder, consideração essa que é solenemente ignorada por muitos comentadores. Trechos em colchetes são meus.

“Ora, a partir da época clássica, o Ocidente conheceu uma transformação muito profunda desses mecanismos de poder [do Antigo Regime]. O ‘confisco’ tendeu a não ser mais a sua forma principal, mas somente uma peça, entre outras com funções de incitação, de reforço, de controle, de vigilância, de majoração e de organização das forças que lhe são submetidas: um poder destinado a produzir forças, de fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-las, dobrá-las ou destruí-las. Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordenar em função de seus reclamos. Essa morte, que se fundamentava no direito do soberano se defender ou pedir que o defendessem, vai aparecer como o simples reverso do direito do corpo social de garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la. [Comentaristas já observaram que Foucault tinha em mente as doutrinas nazistas de “corpo social”] Contudo, jamais as guerras foram tão sangrentas como a partir do século XIX e nunca, guardadas as proporções, os regimes haviam, ate então, praticado tais holocaustos em suas próprias populações. Mas esse formidável poder de morte – e talvez seja o que lhe empresta uma parte da força e do cinismo com que levou tão longe seus próprios limites – apresenta-se agora como o complemento de um poder que se exerce, positivamente, sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua multiplicação, o exercício, sobre ela, de controles precisos e regulações de conjunto. As guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido; travam-se em nome da existência de todos; populações inteiras são levadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver. Os massacres se tornaram vitais. Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras, causando a morte de tantos homens. E, por uma reviravolta que permite fechar o círculo, quanto mais a tecnologia das guerras voltou-se para a destruição exaustiva, tanto mais as decisões que as iniciam e as encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência. A situação atômica se encontra hoje no ponto de chegada* desse processo: o poder de expor uma população à morte geral é o inverso do poder de garantir a outra sua permanência em vida. [Certamente “situação atômica” é uma descrição curiosa, um pouco vaga. É provável que estivesse se referindo às bombas atômicas. A forma como pensamos o biopoder hoje – exaustivamente pensado em termos de uma “necropolítica” – certamente teria uma nova luz se lembrássemos que Foucault já levara em consideração os mecanismos que expõem milhões de indivíduos – ou nossa espécie inteira – à morte. A ênfase demasiada que os comentadores atribuem à fórmula “fazer viver e deixar morrer”** (muito mais um mero esquema explicativo e didático) acaba limitando o alcance da noção de biopoder e as implicações sinistras de nossa ‘situação atômica’]

Considerações sobre a tradução
Consultando o texto original em francês, algumas diferenças surgem imediatamente:
*No original se lê “aboutissement”, que nos passa a ideia de corolário, culminação.
**Na verdade, no História da Sexualidade I Foucault jamais formula dessa maneira. O original diz: “On pourrait dire qu’au vieux droit de faire mourir ou de laisser vivre s’est substitué un pouvoir de faire vivre ou de rejeter dans la mort”. Foucault não diz, portanto, “laisser mourir”. A tradução brasileira optou por “devolver à morte”. A hesitação de Foucault em não meramente inverter os termos dessa fórmula — que, como deve ser lembrada, é meramente esquemática — nos indica que a morte, sob a égide do biopoder, não seria um “deixar morrer”, mas mais propriamente o genocídio, “o sonho dos poderes modernos”.

Referências:

Foucault, Michel. Histoire de la Sexualité: La volonté de savoir. Gallimard, 1998 [1976].

_____. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Edições Graal, 1988.

O Estado de Exceção e a Era Atômica

O primeiro capítulo do já clássico Estado de Exceção, de Giorgio Agamben, é dedicado a estudar o conceito de “estado de exceção” nas variadas doutrinas jurídicas, documentando a emergência da discussão teórica deste dispositivo e sua consequente positivação nos sistemas jurídicos ocidentais. Para Agamben, um dos primeiros autores — da tradição canônica, por assim dizer — a reconhecer a transformação das técnicas de estado de exceção em paradigma de funcionamento normal de governo é Clinton Rossiter, ao declarar: “In the Atomic Age upon wich the world is now entering, the use of constitutional emergency powers may well become the rule and not the exception” (1948, p. 297). Como Agamben observa, Rossiter (e os outros autores do início do século passado que se dedicaram a esse tema) foram (inadvertidamente) mensageiros da tese fundamental de W. Benjamin sobre o conceito de história, a de que o estado de exceção em que vivemos havia se tornado regra, formulada oito anos antes. É sintomático, porém, que Agamben tenha depositado mais relevância na indistinção entre regra e exceção, deixando de lado o que, segundo Rossiter, seria o pano de fundo histórico de tais transformações.* Paralelamente, se o estado de exceção como paradigma planetário de governo pode ser associado com a Era Atômica, a emergência da Era Atômica coincidiria com outro evento de grandes proporções: o antropoceno. Tal nomenclatura parte do pressuposto que os seres humanos são, eles mesmos, forças ativas nos processos geológicos em larga escala. Lewis e Maslin argumentam, no seio de uma polêmica em curso, que uma possível data que poderia melhor situar o advento do antropoceno concorre com a Era Atômica, mais especificamente, os testes com bombas atômicas. Podemos hipotetizar, portanto, que à degradação ambiental corresponderia, em alguma proporção, o aprofundamento das técnicas de exceção.

*O fato definidor, paradigmático, do Estado de Exceção, sua “concretização física”, por assim dizer, seria para Agamben o campo de concentração nazista, e não o possível emprego de armas nucleares ou a Era Atômica. Dar a devida relevância à Era Atômica nessa questão é uma tarefa, atualmente, em aberto.

Referências:

Agamben, Giorgio. Estado de Exceção. Boitempo, 2004.

Lewis, Simon & Maslin, Mark. Defining the Anthropocene. Revista Nature, 2015.

Rossiter, Clinton L. Constitutional Dictatorship: Crisis Government in the Modern Democracies. Princeton University Press, 1948.

The Atomic Age Ushered in The Anthropocene, Scientists Say:
https://www.smithsonianmag.com/science-nature/scientists-anthropocene-officially-thing-180957742/

Chernobil #1

(Construção do sarcófago)

Chernobil está longe de ser um lugar fantasma. Antes da construção da mega-estrutura que atualmente protege o reator danificado, uma outra estrutura, mais simples, fora construída às pressas para conter o vazamento de radiação. Recebeu o nome de sarcófago. Dizia-se que o sarcófago “respirava”: em determinados períodos havia vazamento de radiação, que aumentava ou diminuía conforme as condições climáticas.
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Nos confins do reator 4 há (deve haver) ainda um objeto sinistro: batizado de “pé de elefante”, é uma massa de compostos radioativos, areia, e restos do reator. Derreteu muitas camadas e chegou perigosamente perto do solo (embora continue se movendo lentamente, hoje se estima que não exista perigo de afetar o solo e as águas subterrâneas).
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Pequenos insetos, pássaros e raposas andam livremente pela região. Turistas visitam em intervalos regulares. Chernobil pulsa.

(“pé de elefante”. mesmo poucos minutos na presença do objeto pode ser fatal)