Sobre a peste e a disciplina (resumo de um texto)

Há um importante texto de Judith Butler, intitulado Sexual Inversions, em que a filósofa elabora uma das primeiras críticas em relação ao conceito de biopoder sob o ângulo de sua aparente opção vitalista. Se isso se tornará uma espécie de senso comum na primeira década do segundo milênio, é possível dizer que o texto butleriano é um precursor desta voga teórica. Butler argumenta que Michel Foucault, em História da Sexualidade, situa o biopoder e o dispositivo da sexualidade em uma era pós-pandêmica: na leitura da filósofa, Foucault teria argumentado que, ficando para trás a peste e a morte, a era do biopoder seria marcada por uma “opção pela vida” em um período histórico com relativa ausência de pandemias de larga escala. Essa trégua pandêmica é o que teria possibilitado o investimento político no aparato reprodutivo: o sexo. Portanto, o investimento no sexo depende da reclusão da morte. Butler argumenta, porém, que a pandemia de HIV-AIDS coloca um desafio teórico à narrativa foucaultiana, pois agora a morte passa a habitar o dispositivo biopolítico de reprodução da vida: nesse sentido, os homossexuais seriam vítimas de uma “administração da vida” que os expõe à morte, na medida em que a atenção à saúde daquela população é resultantemente diferencial (essa estrutura argumentativa será ampliada em Precarious Life e Frames of War). É preciso questionar, porém, se procede a crítica de Butler – se realmente Foucault teria situado suas pesquisas em um período alegadamente “pós-pandêmico”. Primeiro, parece correta a informação histórica que a Era Clássica (período em que se situam muitas das pesquisas de Foucault, entre os séculos XVII e XVIII) vê uma diminuição no número de pestes, sendo o ano de 1720 provavelmente o último de uma pandemia de larga escala no continente europeu. Segundo, é bem verdade que pesquisas centrais na obra foucaultiana, não só História da Sexualidade, mas também História da Loucura, privilegiaram um período “pós-pandêmico”: é o caso desta última, que descreve o rescaldo de uma era pós-lepra. Mas não seria correto dizer que Foucault desconsidera a pandemia; na verdade, a maquinaria do biopoder é intimamente imbricada com os mecanismos de poder outrora destinados a administrar os infectados. Foucault o diz explicitamente em Vigiar e Punir (e também no curso Os Anormais). O modelo de administração disciplinar da sociedade seria tributário da resposta político-administrativa em relação à peste, concebida durante o século XVII para manter o controle exaustivo de cada reentrância de uma determinada localidade; há vigias nas principais ruas, há informação produzida sobre o número de infectados, há estrito controle de circulação etc. Além disso, o modelo da exclusão que caracteriza o grande internamento e o surgimento dos Hospitais Gerais (os primeiros capítulos de História da Loucura narram esse processo) pode ser caracterizado, para Foucault em Vigiar e Punir, como a estratégia da exclusão de leproso. O panóptico – este correspondente ideal da prisão – é a amálgama entre essas duas doutrinas de controle populacional, o da administração da peste e o da exclusão do leproso: é, propriamente, o que perfectibiliza o projeto de inclusão de um excluído, e o que explicaria, em parte, a outorga de marcadores negativos em relação aos presos. Foucault, longe de desconsiderar o efeito pandêmico, estrutura sua teorização sobre o controle dos corpos em torno dele, mesmo que sob o signo da ausência. 

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