100.000

Brasil tem 2.347 mortes e 36.599 casos de coronavírus neste 18 de ...

Muitos genocídios oficialmente reconhecidos tem figuras inferiores a 100.000. É somente somando o número de vítimas das bombas atômicas que atingiram Hiroshima e Nagasaki que chegamos a um valor superior a 100.000. Grandes catástrofes históricas (naturais ou man-made), que definiram gerações, sequer chegaram a 20.000 mil mortos. É preciso pelo menos dar dimensão ao inefável da morte. 100.000 é um número irreal, pois como geralmente ocorre, o que é traumático tem ares de irrealidade. Assim também o será quando chegarmos a 200.000, ou (muito) mais. Foucault certa vez disse que o genocídio é o “sonho dos poderes modernos”; Freud, que o sonho “é a realização de um desejo”. O que caracteriza a atual governamentalidade, a gestão da catástrofe, são as alavancas distribuídas entre represar ou majorar a exposição à morte; entre apaziguar ou incrementar a distribuição da vulnerabilidade; em criar bolsões de risco desigual, e distribuir a morte democraticamente entre os atingidos de sempre. A preocupação humanista em salvar vidas, válida para o momento, significa porém alimentar implicitamente a gestão da catástrofe que é morfologicamente constituída para diferenciar vidas; é por isso que qualquer defesa da vida será, enquanto nosso poder soberano for o da gestão da catástrofe, a salvaguarda da morte.

A Bomba Atômica

Japão reconhece afetados por chuva radioativa como sobreviventes ...
(Hiroshima, marco zero da Era Atômica, que completou hoje 75 anos)


A Bomba Atômica

Quando cai a bomba atômica
Dia vira noite
Gente vira sombra.

Sakamoto Hatsumi, 1952.

(Traduzido livremente de: Selden, Kyoko; Selden, Mark (1989). The Atomic Bomb: Voices from Hiroshima and Nagasaki)

Sobre a peste e a disciplina (resumo de um texto)

Há um importante texto de Judith Butler, intitulado Sexual Inversions, em que a filósofa elabora uma das primeiras críticas em relação ao conceito de biopoder sob o ângulo de sua aparente opção vitalista. Se isso se tornará uma espécie de senso comum na primeira década do segundo milênio, é possível dizer que o texto butleriano é um precursor desta voga teórica. Butler argumenta que Michel Foucault, em História da Sexualidade, situa o biopoder e o dispositivo da sexualidade em uma era pós-pandêmica: na leitura da filósofa, Foucault teria argumentado que, ficando para trás a peste e a morte, a era do biopoder seria marcada por uma “opção pela vida” em um período histórico com relativa ausência de pandemias de larga escala. Essa trégua pandêmica é o que teria possibilitado o investimento político no aparato reprodutivo: o sexo. Portanto, o investimento no sexo depende da reclusão da morte. Butler argumenta, porém, que a pandemia de HIV-AIDS coloca um desafio teórico à narrativa foucaultiana, pois agora a morte passa a habitar o dispositivo biopolítico de reprodução da vida: nesse sentido, os homossexuais seriam vítimas de uma “administração da vida” que os expõe à morte, na medida em que a atenção à saúde daquela população é resultantemente diferencial (essa estrutura argumentativa será ampliada em Precarious Life e Frames of War). É preciso questionar, porém, se procede a crítica de Butler – se realmente Foucault teria situado suas pesquisas em um período alegadamente “pós-pandêmico”. Primeiro, parece correta a informação histórica que a Era Clássica (período em que se situam muitas das pesquisas de Foucault, entre os séculos XVII e XVIII) vê uma diminuição no número de pestes, sendo o ano de 1720 provavelmente o último de uma pandemia de larga escala no continente europeu. Segundo, é bem verdade que pesquisas centrais na obra foucaultiana, não só História da Sexualidade, mas também História da Loucura, privilegiaram um período “pós-pandêmico”: é o caso desta última, que descreve o rescaldo de uma era pós-lepra. Mas não seria correto dizer que Foucault desconsidera a pandemia; na verdade, a maquinaria do biopoder é intimamente imbricada com os mecanismos de poder outrora destinados a administrar os infectados. Foucault o diz explicitamente em Vigiar e Punir (e também no curso Os Anormais). O modelo de administração disciplinar da sociedade seria tributário da resposta político-administrativa em relação à peste, concebida durante o século XVII para manter o controle exaustivo de cada reentrância de uma determinada localidade; há vigias nas principais ruas, há informação produzida sobre o número de infectados, há estrito controle de circulação etc. Além disso, o modelo da exclusão que caracteriza o grande internamento e o surgimento dos Hospitais Gerais (os primeiros capítulos de História da Loucura narram esse processo) pode ser caracterizado, para Foucault em Vigiar e Punir, como a estratégia da exclusão de leproso. O panóptico – este correspondente ideal da prisão – é a amálgama entre essas duas doutrinas de controle populacional, o da administração da peste e o da exclusão do leproso: é, propriamente, o que perfectibiliza o projeto de inclusão de um excluído, e o que explicaria, em parte, a outorga de marcadores negativos em relação aos presos. Foucault, longe de desconsiderar o efeito pandêmico, estrutura sua teorização sobre o controle dos corpos em torno dele, mesmo que sob o signo da ausência. 

Biopolítica e Coronavírus, ou não esquecer Foucault

Caiu por terra a narrativa dos que viam o coronavírus como “mais uma gripe”, “histeria”, “produto midiático” ou congêneres. O suposto bom senso dos imunes ao pânico, chamando à razão os alarmistas histéricos, foi eventualmente confrontado com a farta evidência do dano que o vírus provoca, seja a não desconsiderável taxa de mortalidade, seja o colapso de sistemas de saúde. Esses, os que tentaram menosprezar o perigo, estavam equivocados, mas talvez com alguma boa fé: é lícito que, numa situação de alta tensão, ressoe uma voz no espaço público tentando acalmar os ânimos. Mas entre os engambelados das últimas semanas, poucos erraram tão espetacularmente como Giorgio Agamben. O erro do italiano foi tão grande que, arriscaria dizer, acabou por demonstrar as limitações de seu projeto crítico no campo das pesquisas sobre o biopoder. Em relação a isso, argumentarei mais adiante que talvez seja saudável praticar um retorno ao pensamento de Michel Foucault.

Agamben é um dos grandes responsáveis por uma certa “virada necro-tanatopolítica” nas últimas décadas, que consistiu em dar ênfase ao lado renegado do biopoder, aquele de causar a morte. É importante ter em mente o contexto da época dos primeiros livros da série Homo Sacer, isto é, o de avanço de uma certa soberania inquestionável por parte dos Estados Unidos, de forma ainda mais pronunciada pós 11 de setembro. Seu argumento, pelo menos em Estado de Exceção, é conhecido e dá novos contornos à máxima benjaminiana: para Agamben, o Estado de Exceção é, desde a Segunda Guerra Mundial, a regra geral de governo. A astúcia de Agamben consistiu em denunciar uma linha de continuidade que liga os atuais Estados democrático-liberais às técnicas de morte do aparato nazista: Guantánamo Bay não está distante de Auschwitz. Assim poderíamos ler, de forma paradigmática, nossas prisões, os campos de refugiados, as comunidades sitiadas; esse último caso, talvez, como uma porta de entrada privilegiada para seu pensamento em território brasileiro. Todas essas situações políticas são aquelas que produzem o que chamou de vida nua, uma vida exposta às ações do poder soberano.

Não surpreende, considerando o contexto de legislações propriamente de exceção, tal como o regime de quarentena na Itália, que Agamben tenha se pronunciado sobre o caso. Sua intervenção sobre o coronavírus, porém, não foi além do diagnóstico de quase 20 anos atrás, isto é, sobre a generalização do Estado de Exceção; além disso, os textos viralizaram pelos motivos errados, gerando algumas respostas, em geral negativas. Vamos aos textos.

Em “L’invenzione di un’epidemia”, de 26 de fevereiro, Agamben logo no início chama a epidemia de “suposta epidemia” e, mais adiante, de “gripe normal”. Àquela altura o país europeu já contava com 528 casos confirmados, com 14 mortes. Mesmo nos idos distantes de fevereiro deste ano, já era fartamente sabido o potencial disruptivo do vírus, e que muito rapidamente uma centena de casos poderia logo se transformar em milhares. As decisões “imotivadas” do governo confirmariam, para Agamben, o paradigma do Estado de Exceção, em que os governos se valem de perigos sobredimensionados para expandir seu arsenal de artifícios jurídicos de vigilância e controle, diminuindo cada vez mais a liberdade. O pano de fundo afetivo seria a mobilização de um “clima de pânico”, criando as condições necessárias para a rápida aprovação de duras e desnecessárias medidas.

Na sua segunda intervenção, Contagio, de 11 de março, dia em que a OMS qualificou a situação global de pandemia, Agamben argumenta que tratar-se-ia de uma “[assim] chamada epidemia” — no dia 11, havia na Itália mais de 10.000 casos da doença. Agamben usa nesse texto uma operação teórica que o consagrou: o de eleger uma categoria do passado para descrever algo que ocorre no presente. No caso, o filósofo resgata a figura do Untore, que no ano 1630 designava aqueles indivíduos supostamente responsáveis por transmitir a peste propositalmente, espalhando uma espécie de óleo (unto) em superfícies. Tal acusação era largamente motivada por suspeitas infundadas, em uma modalidade do que hoje chamaríamos de fake news. As (ainda mais duras) normativas italianas frente ao coronavírus estariam reativando a caça ao Untore, o perseguido da peste; ou seja, assim como aconteceu com o terrorismo em tempos recentes, todos são transformados em transmissores em potencial de algum perigo. Tal quadro levaria ao fim dos contatos sociais e das relações de vizinhança, objetivos implícitos de estratégias que visam, a rigor, despolitizar.

É espantoso que Agamben discuta em termos de contágio e pareça ignorar toda uma farta literatura que discute as relações entre contágio e biopoder, especialmente dentro dos marcos da pandemia de HIV. Não há nada de essencialmente novo em pensar o “paradigma do contágio” em comunhão com o “paradigma biopolítico”. Mas, por hora, chega de criticar Agamben. Outros já o fizeram por ocasião de seus recentes textos infelizes, e muito melhor que eu: Jean-Luc Nancy, Bruno CavaPanagiotis Sotiris. Gostaria de partir deste último texto para ir em uma direção que me parece mais produtiva: como fora aludido, um certo retorno ao pensamento de Foucault sobre o biopoder e, se possível desfazer determinadas incompreensões que se instalaram nos últimos anos.

O que a epidemia do coronavírus demonstra é mais o vigor do esquema explicativo de Michel Foucault do que as atuais interpretações de viés necro-tanatopolíticas. Sabemos que Foucault via o biopoder como uma série de acontecimentos, desde os teóricos até os das práticas concretas, que formaram a base de uma nova relação dos Estados-nacionais com o elemento da vida, o elemento biológico. Não mais a exclusão da vida política e o saque de bens e de direitos que caracterizariam o Antigo Regime, mas novas técnicas organizadas em torno da melhor extração das forças vivas. Assim, o biopoder é um índice descritivo do momento em que os Estados passam a exercer a gestão de esferas da vida social que hoje nos parecem óbvias, como saúde, natalidade, mortalidade, medicina social etc. Foucault não sugere que isso se derivaria de uma preocupação humanista do Estado; trata-se, na verdade, de corresponder às demandas do capitalismo. Bruno Cava sintetizou bem em seu texto recente: o conceito de biopolítica não necessariamente descreve uma situação “boa” ou“ruim”: Foucault se limita a justamente apontar os limites de nossa situação.

Diante do coronavírus, os Estados, em sua maioria, têm exercido um forte controle sanitário-populacional com o objetivo de evitar a propagação do coronavírus; em sentido estrito, ações estão sendo tomadas para evitar um maior número de mortos. Tal biopolítica nos situa nos marcos de como Foucault concebeu as técnicas de gestão da população, voltadas (prioritariamente, mas não exclusivamente) para melhor acondicionar as forças viventes. Cada vez mais resta evidente, porém, que mesmo ações drásticas não têm sido suficientes, e cresce um senso de responsabilidade coletiva em relação aos que não podem se proteger, aos que precisarão trabalhar, aos que estão em condições sanitárias desfavoráveis. Nesse sentido, eis aqui mais um erro de leitura da atual situação em Agamben: o gesto de muitos de voluntariamente se isolar e evitar contato social não seria a quebra da sociabilidade, mas propriamente uma versão de solidariedade baseada numa vulnerabilidade comum. Aqui é possível um paralelo com a pandemia de HIV, em que a organização de movimentos sociais fez surgir uma “biopolítica de baixo”, como sugeriu Sotiris, inclusive pressionando o Estado no sentido de garantir melhor acesso à saúde. O Estado, então, como mais um dos atores em um complexo jogo de forças: não é precisamente o que sugeriu Foucault, ao retirar do escopo privilegiado de análise a soberania do Estado?

Em termos de biopoder entre a vida e a morte, o que a lente foucaultiana nos lega são dois modos de ver os fenômenos da gestão de corpos e populações: primeiro, entrever as ações de poderes sociais que diferenciam os que devem morrer dos que devem viver; os mais vulneráveis dos menos vulneráveis. Aliás, é quando Agamben avança nessa direção, sobre como opera o poder (soberano) no caso da decisão sobre a vida e a morte, que vemos os maiores pontos de avanço em sua obra; contudo, essa leitura é eclipsada — em parte pelos seus leitores e em parte também pelo próprio autor — pela precedência de uma mentalidade generalista e, no limite, paranoica, que nos limitaria a enxergar toda situação como Estado de Exceção e toda vida como em permanente risco.

Segundo, a diferença essencial que Foucault enfatiza diversas vezes ao descrever o biopoder é insistir que, agora, os poderes sociais não atuam mais exclusivamente em corpos individuais (a esfera da disciplina), mas no próprio “corpo social” de uma determinada nação: ou seja, para pensar a vida e a morte, devemos pensar em fenômenos a nível populacional. É nesse sentido que, modernamente, toda política de morte tem efeitos avassaladores — importante lembrar que é de Foucault o termo “tanatopolítica” —, e toda política de majoração da vida tem escopo igualmente amplo, embora, como já se observou muitas vezes, diferencial. É por isso que tem sido uma luta política constante, enfim, a de cada vez mais expandir a abrangência de políticas de afirmação da vida: de conquista de remédios mais acessíveis, de direitos sanitários e de personalidade, de despatologização de identidades trans e homossexuais etc. Todas essas lutas, em sentido estrito, são biopolíticas.

Isso não significa menosprezar os lugares, ou como Agamben os qualifica, os campos em que se exerce o violento poder soberano; ainda nesse sentido, é também vigorosa a análise de Achille Mbembe. Em países como o Brasil operam simultaneamente diferentes temporalidades, diferentes regimes de poder; basta olhar, por exemplo, as diferenças de expectativa de vida por bairro em uma mesma grande cidade. Mas não podemos ceder à tentação de generalizar o diagnóstico tanatopolítico, de ver em cada nova medida sanitária os avatares do totalitarismo e da exceção; a potência da mirada foucaultiana reside em difratar as linhas de força dos poderes sociais identificando precisamente onde opera o apagamento da vida, o soterramento dos inúteis e dos desvalidos. É nesse sentido, por exemplo, que tem avançado Judith Butler com as discussões sobre o luto, isto é, a ocasião em que se mobiliza a dor da perda: com o avanço do coronavírus, quais vidas não estão sendo choradas?

Por último, cumpre explicitar uma certa ironia que perpassa esse debate. Em um mundo cada vez mais saturado de fake news, é possível que a iniciativa de menosprezar o coronavírus partisse de uma intuição correta: a propagação de notícias hiperbólicas pode corroborar com a desinformação, ou seja, aumentar o “clima de histeria”. Porém, está cada vez mais claro que trabalham pela desinformação, na verdade, os que insistem em um certo “clima de normalidade”, como vimos nas recentes manifestações em apoio ao governo, em que milhares de pessoas se colocaram em risco gratuitamente. Estamos numa situação em que a própria (falta de) informação é, enfim, uma questão de biopolítica.

“Chernobyl” (HBO)

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O grande evento da televisão esse ano não foi a temporada final de Game of Thrones, mas a estréia da minissérie Chernobyl, também pela HBO.

A guerra fria há muito cessou. Não há anti-comunismo rasteiro, embora as críticas ao governo soviético sejam certeiras. Mas o que desnudou todas as falhas do regime foi a própria ferida no reator 4. Omissão, mentiras, obediência cega, erro(s) humano(s), falha de projeto, uma sequência ininterrupta de acontecimentos colaterais que levou ao desfecho conhecido. Todos narrados com sensibilidade e realismo.

Se um acidente daquela envergadura só poderia acontecer na União Soviética, em que camadas e camadas de omissão burocrática convergiram na culpabilidade do crime, também a solução do acidente é inerentemente soviética: heroica, nacionalista, trágica. A série narra, paralelamente à cadeia inevitável de erros dentro do aparato técnico-científico soviético, o grande sacrifício nacional contra a catástrofe. Mas assim como a Revolução e a Grande Guerra Patriótica, lá toda vitória é de Pirro.

O cuidado com os detalhes e o realismo são admiráveis. Os produtores da série gravaram cenas em uma usina nuclear similar na Lituânia, usina com o mesmíssimo reator RBMK-1000. A ligação que relata o fogo em Chernobil; o aviso do acidente na televisão estatal; a anódina gravação que anuncia a evacuação da cidade; a destruição, a morte, a liquidação: tudo real.

O criador da série, Craig Mazin, é leitor de Svetlana Aleksiévitch, de Vozes de Tchernóbil. O primeiro relato do livro é de Lyudmilla Ignatenko, contando a trágica morte de seu marido, bombeiro que esteve na primeira hora do acidente Vasily Ignatenko. A série também acompanha os Ignatenko, e a catástrofe ganha ares particulares, sem perder, contudo, a dimensão global.

A compositora islandesa Hildur Guðnadóttir dá a ambientação perfeita. Sua música, não há como dizê-lo de outra forma, evoca o fim do mundo. Ela relata ter viajado até a usina na Lituânia utilizada como set de filmagens na série, gravando sons ambientes utilizados posteriormente na sua composição. Mesmo a música precisou ser afetada por radiação.

Pripyat, cidade plutópica

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(Pripyat, cidade que abrigava a maioria dos trabalhadores da Usina Nuclear de Tchernóbil V. I. Lênin. Já Tchernóbil era uma cidade menor, mais afastada, e menos glamourosa)

1. Quando se fala da vida das pessoas comuns do outro lado da cortina de ferro, imagina-se um cenário cinza e pobre; as prateleiras vazias e sem variedade; os carros iguais, enguiçados e desinteressantes; as cidades, modernistas, sem qualquer referencial arquitetônico chamativo. Embora os elementos dessa imagem caricata contenham em si alguma verdade, dentro da União Soviética existiam cidades que, destoando daquela aparência pobre e insípida, podiam ser qualificadas como verdadeiros paraísos comunistas. As atomgrad, cidades atômicas, aproximavam-se dos ideais científicos e tecnológicos do regime: serviam de apoio às usinas e instalações nucleares, e contavam com uma variedade de serviços que nem sempre o cidadão médio da URSS tinha à disposição. As escolas eram excelentes; as lojas, comparáveis às de Moscou; apartamentos confortáveis; grandes hospitais; cinema, teatro, piscinas, hotéis, bibliotecas… Obter um posto de trabalho em uma dessas cidades era considerado prestigioso e, consequentemente, havia alguma concorrência. Pripyat, cidade planejada que servia de apoio à usina de Tchernóbil, era um desses pequenos paraísos. Os relatos que Svetlana Aleksiévitch colhe em Vozes de Tchernóbil convergem quando os ex-moradores da região relembram Pripyat, evocando um lugar verdadeiramente idílico — sopesando que, evidentemente, a reminiscência floreia um pouco o passado.

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2. Kate Brown nomeia esses cidades de plutopias. Seu argumento é que, tanto na União Soviética, quanto nos Estados Unidos, essas comunidades atômicas somente eram paradisíacas na medida em que se escondiam os lixos e as constantes contaminações nucleares. O cidadão comum, temendo perder o bom emprego e a boa posição social, ignorava os riscos e os acidentes frequentes — também os governos, frise-se, ativamente deixavam os cidadãos desinformados. A convivência com a radiação tornava-se um fato corriqueiro, desimportante.

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3. Adam Higginbotham, no excelente Midnight in Chernobyl, documenta essa mesma despreocupação que resistiu mesmo durante os intensos dias subsequentes ao acidente no quarto reator da usina. Os cidadãos, em geral, dispunham de pouco conhecimento em relação aos efeitos da radioatividade e, mesmo diante das longas colunas de fumaça que saíam do reator, dos helicópteros, dos carros oficiais de burocratas soviéticos, das ambulâncias, dos bombeiros e, sobretudo, dos rumores, a vida continuava normalmente em Pripyat. Higginbotham descreve essa cena terrível, que justapõe o frágil paraíso e a dura realidade das atomgrad:

“Even those who had seen the developing catastrophe firsthand found it hard to reconcile the destruction at the plant with the carefree atmosphere on the streets of Pripyat. A manager working on the Fifth and Sixth Units had seen the blaze for himself as he returned late at night by road from a trip to Minsk. Just an hour after the explosion, he stopped his car less than a hundred meters from the shattered reactor hall of Unit Four and watched, transfixed and terrified, as firemen on the roof struggled to contain the flames. Yet when he awoke at home in Pripyat at ten the following morning, everything seemed so normal. He felt determined to enjoy the day with his family”.

PERIGO #2

Reproduzo abaixo a manifestação oficial do governo soviético em relação ao acidente em Tchernóbil. As autoridades sentiram-se pressionadas em relatar o acontecido considerando que boa parte do mundo já havia identificado a nuvem radioativa. A comunicação não contém nenhuma grande inverdade, embora quase todas as frases sejam absolutamente enganosas:


(Programa de notícias Vremya, da Televisão Central Soviética. O anúncio do acidente foi feito no fim da programação do dia)

Do conselho de ministros da URSS:
Ocorreu um acidente na Usina Nuclear de Tchernóbil.
Um dos reatores foi danificado.
Medidas estão sendo tomadas para eliminar as consequências do acidente.
Ajuda está sendo dada àqueles afetados.
Criou-se uma comissão governamental.

“As armas do futuro”, de Walter Benjamin

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Em 1925, Walter Benjamin escreve um curto e preciso ensaio sobre as armas químicas, “As armas do futuro: Batalhas com cloroacetofenona, difenilamina cloroarsina e sulfeto de dicloroetila”. Sem ter conhecido a bomba atômica e Hiroshima, Benjamin prevê, com dissabor, o escopo destrutivo das armas químicas (quando utilizadas) e o uso implícito de retórica ou de “guerra psicológica”, por assim dizer (quando não utilizadas). Reproduzo abaixo alguns trechos, retirados do Blog da Boitempo:

“As designações anteriores serão tão populares na próxima guerra quanto ‘trincheira’, ‘submarino’, ‘Berta Gorda’ e ‘tanque’ foram na passada. Para os vocábulos químicos difíceis de pronunciar serão adotadas em poucos dias cômodas abreviações. E essas expressões promovidas em poucas horas a uma atualidade jamais imaginada superarão em popularidade o vocabulário de todos os relatórios dos fronts escritos de 1914 a 1918.
Elas dizem respeito a cada pessoa diretamente. A guerra vindoura terá um front espectral. Um front que será deslocado fantasmagoricamente ora para esta ora para aquela metrópole, para suas ruas, diante da porta de cada uma de suas casas. Ademais, essa guerra, a guerra do gás que vem dos ares, representará um risco literalmente “de tirar o fôlego”, em que esse termo assumirá um sentido até agora desconhecido. Porque sua peculiaridade estratégica mais incisiva reside nisto: ser a forma mais pura e radical de guerra ofensiva. Não há defesa eficiente contra os ataques com gás pelo ar. Até mesmo as medidas privadas de proteção, as máscaras antigás, falham na maioria dos casos. Por conseguinte, o ritmo do conflito bélico vindouro será ditado pela tentativa não só de defender-se, mas também de suplantar os terrores provocados pelo inimigo por terrores dez vezes maiores. Em consequência, é irrelevante quando teóricos mais bem intencionados acenam com a perspectiva “humana” do gás lacrimogêneo, e até procuram criar simpatia pela guerra com o gás, comparando-a com a guerra aérea com materiais explosivos. Outros já têm a visão mais aguçada quando colocam de antemão e em primeiro plano, como motivo para o ataque com gás (cuja importância crescente já foi ensinada pela guerra passada), o seguinte: a finalidade última das ações da frota aérea deve ser destruir a vontade de resistência inimiga. Alguns poucos “raids [ataques]” devem infundir na população dos centros inimigos um terror inconsciente tal que malogre qualquer apelo à organização da resistência. O terror deve ser algo similar à psicose.”

[…]

“Com o que se parecem os gases venenosos, cuja aplicação pressupõe a suspensão de todos os movimentos humanos? Conhecemos dezessete até agora, dos quais o gás mostarda e a lewisita são os mais importantes. As máscaras antigases não oferecem proteção contra eles. O gás mostarda corrói a carne e, quando não acarreta diretamente a morte, produz queimaduras cuja cura demanda três meses. Esse gás permanece virulento durante meses em objetos que entraram em contato com ele. Nas regiões que alguma vez foram alvo de um ataque com gás mostarda, meses depois, cada pisada no solo, cada maçaneta de porta e cada faca de pão ainda podem provocar a morte. O gás mostarda, a exemplo de muitos outros gases venenosos, torna todos os víveres incomestíveis e envenena a água. Os estrategistas imaginam assim a utilização desse recurso: certos distritos taticamente importantes devem ser cercados com barreiras de gás mostarda ou então de difenilamina clorasina. Dentro dessas barreiras tudo perece e nada consegue passar por elas. Desse modo, casas, cidades, campos podem ser preparados de tal forma que, durante meses, nenhuma vida animal ou vegetal é capaz de medrar neles. Nem é preciso dizer que, no caso da guerra com gás, cai por terra a diferenciação entre população civil e população combatente e, desse modo, um dos fundamentos mais sólidos do direito dos povos. A ‘lewisita’ é um veneno à base de arsênico que penetra imediatamente no sangue, matando de forma irremediável e súbita tudo o que atinge. Durante meses todas as áreas atingidas por ataques com esse gás ficam empestadas de cadáveres. Naturalmente não existe proteção contra ele em tais regiões: porões subterrâneos, que protegem quando muito de bombas explosivas, trazem a morte certa no caso de ataques com gás, porque o gás, pesado, tende para os lugares mais baixos”.

Onkalo

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(esboço* de uma estrutura que dirá: perigo!)

1. A destinação final do lixo de usinas nucleares, material ainda perigoso e radioativo, constitui um verdadeiro desafio para as autoridades. O documentário Into Eternity, de Michael Madsen, documenta esse processo no contexto finlandês, evidenciando a solução final concebida pela governo: um depósito subterrâneo permanente. Na verdade, autoridades da área de energia nuclear já concluíram, há décadas, que a melhor solução, a que menos provoca riscos, passa por enterrar o material quilômetros abaixo da superfície. Um dos técnicos envolvidos no projeto de Onkalo, o depósito finlandês, ilustra o raciocínio da seguinte maneira: o mundo da superfície é extremamente instável. Só nos últimos 100 anos tivemos dois conflitos de escala mundial, além de incontáveis catástrofes naturais. Qualquer destinação permanente do lixo atômico que passe por mantê-lo na superfície, material que permanecerá radioativo por cerca de cem mil anos, estará sujeito às incertezas políticas, intempéries climáticas etc. O mundo subterrâneo, ao contrário, é estável; as mudanças lá só ocorrem muito lentamente.

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(planos de Onkalo)

2. É digno de nota, e o documentário sublinha esse aspecto, que o longo tempo de decaimento do material extrapola os parâmetros de nossa cognoscibilidade. Em cem mil anos caberia, várias vezes, toda nossa História, nosso arquivo. O surgimento de nossa espécie deve ter se dado cerca de duzentos mil anos atrás. Um empreendimento que transite nessa escala de tempo é, sem dúvida, nosso maior projeto até então e, provavelmente, nosso maior legado, nossa maior assinatura para os seres humanos e não-humanos que habitarão essa Terra futuramente.

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3. Um dos maiores problemas que as autoridades se viram às voltas foi com a questão da comunicabilidade. Como transmitir para as gerações futuras que o que está lá guardado não deve sair da terra? Eis novamente a temporalidade radioativa. A verdade é que nunca dominamos esse tipo de energia, e a dificuldade em comunicar seu perigo equivale às constantes tentativas de tornar essa energia segura. Uma caveira seria suficiente para afastar os humanos do futuro? Quantas vezes utilizamos a caveira como símbolo triunfante de guerra? Essa dificuldade inspirou uma nova área da estudos: a semiótica nuclear. Os burocratas de Onkalo reconhecem, porém, o imediato paralelo com os artefatos sagrados da Antiguidade, especialmente os egípcios, que conferiram alguma ritualidade ao ato de confinar determinados corpos e objetos para a eternidade. É possível que, ao escavar o que restou dos seus artefatos sagrados, tenhamos ignorado diversos avisos. O símbolo criado pela International Atomic Energy Agency contém uma mensagem que, verdade seja dita, nem sequer no nosso tempo somos capazes de compreendê-la:

*Cf.: http://news.cornell.edu/stories/2017/08/how-best-say-keep-out-10000-years-future

Antropoceno demasiado humano

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(Anna Tsing)

A celebrada antropóloga Anna Lowenhaupt Tsing esteve na UFSC essa semana, onde proferiu a palestra “The more-than-human Anthropocene”. Sua comunicação consistiu em elencar algumas diretivas metodológicas no trabalho teórico sobre o antropoceno. Sua principal sugestão, contudo, requer um olhar que desafia a própria terminologia do termo “antropoceno”. É relativamente bem aceito que os humanos se tornaram uma força geológica, mudando significativamente os rumos do planeta; contudo, uma outra mirada nos mostra que outros agentes, os não-humanos, quase como “tomam carona” nas mudanças que engendramos, produzindo mudanças outras, imprevisíveis. Um dos seus exemplos foi o mosquito aedes aegypti, que, agora literalmente, tomou carona da África para a América nos insalubres navios do tráfico de escravos e, nesse processo, passou a carregar doenças que se espalharam para o outro continente. A própria história evolutiva do mosquito, argumenta, foi profundamente alterada pela rota do Atlântico negro, apenas uma das engrenagens de um nascente capitalismo predatório que se globalizava. Mais recentemente, mosquitos geneticamente modificados estão sendo utilizados como forma de controle da(s) praga(s); uma variedade específica do mosquito foi desenvolvida com o propósito de frustrar sua reprodução, com genes que, quando ativados, impedem que se atinja o desenvolvimento completo. Embora a técnica seja alegadamente segura e tenha demonstrado, até o momento, bons resultados, a história das tecnologias está permanentemente assombrada por essa cena que se repete quase como um tropo: aquela em que o cientista incauto assegura, antes do desastre, que nada de ruim irá acontecer e que todas as precauções foram tomadas.